Há quarenta e três anos, Fernando Lerdo de Tejada, Carlos Garcia Juliá e José Fernández Cerrá levavam a cabo uma das mais conhecidas ações contra a transição democrática no país. O brutal assassinato levou à morte de cinco pessoas. Um dos assassinos nunca chegou sequer a sentar-se no banco dos réus.
Em 24 de janeiro de 1977, vários homens armados invadiram o escritório de advocacia trabalhista da organização sindical Comissões Operárias, localizado na rua Atocha, 55, no centro de Madri. Mataram três advogados trabalhistas (Enrique Valdelvira Ibáñez, Luis Javier Benavides Orgaz e Francisco Javier Sauquillo), o estudante de Direito Serafín Holgado e o funcionário administrativo Ángel Rodríguez Leal. Quatro outras pessoas ficaram gravemente feridas.
García Juliá perpetrou a massacre da Atocha junto a uma milícia fascista de seguidores do falecido notário Blas Piñar, fundador do partido ultradireitista Força Nova. José Fernández Cerra, que também foi condenado a 193 anos como executor, e Francisco Albaladejo, que recebeu pena de 73 anos como indutor, o acompanharam no crime. Fernando Lerdo de Tejada foi processado, mas fugiu antes de se sentar no banco dos réus. Em sua sentença, a Audiência Nacional considerou que, junto do também processado Leocadio Jiménez Caravaca, eles compunham um “grupo ativista e ideológico, defensor de uma ideologia política radicalizada e totalitária, desconforme com a mudança institucional que estava se dando na Espanha”.
A matança de Atocha se tornou um dos símbolos da transição espanhola para a democracia. Ocorreu quando faltavam dois meses para a legalização do Partido Comunista da Espanha (PCE, ao qual as Centrais Operárias estavam vinculadas na época) e a cinco da realização das primeiras eleições democráticas após quatro décadas da ditadura de Francisco Franco (1936-75).
A prisão e extradição
Foragido desde 1994, García Juliá foi capturado no Brasil em 6 de dezembro de 2018, na Barra Funda, zona oeste de São Paulo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em dezembro de 2019, a extradição de Carlos García Juliá.
O ministério das Relações Exteriores informou que o presidente Jair Bolsonaro autorizou a extradição e que García Juliá está apto para ser entregue à Espanha em um prazo de 60 dias.
A Justiça espanhola quer que García Juliá, hoje com mais de 65 anos, cumpra os 10 anos de prisão restantes da sentença de 30 anos recebida em 1980 pelo assassinato de cinco pessoas.
O fim de uma era
Pressionado pela queda dos regimes autoritários na Segunda Guerra Mundial e pela instauração da democracia no vizinho território português (em 1974), o ditador espanhol Francisco Franco viu-se obrigado a ceder à pressão internacional e a trabalhar na transição do país para a democracia.
Durante mais de 40 anos, Francisco Franco havia sido o rosto do movimento conhecido como “Franquismo”. O regime era caracterizado por defender com mão firme os princípios do conservadorismo e nacionalismo, em linha com alguns dos ideais de Mussolini e Hitler.
De forma a garantir que o novo rumo que Espanha iria tomar seguia em linha com o que o desejável, Franco nomeou como seu “herdeiro político” o rei Juan Carlos [pai do atual rei em funções em Espanha, Filipe VI], mesmo depois de a monarquia ter sido extinta.
Nos períodos em que o “Caudillo” esteve temporariamente incapaz de tomar as rédeas do país, em 1974 e 1975, foi o príncipe que exerceu as funções do chefe de Estado. Após a morte de Francisco Franco, em 1975, terá sido também ele que desempenhou um papel decisivo na consolidação da democracia em Espanha.
A resistência de extrema-direita
Embora a transição democrática tenha sido mais ou menos pacífica, um pouco por todo o país persistiram movimentos de apoio ao antigo regime franquista.
Entre os apoiantes mais resilientes estavam os militantes de extrema-direita e alguns comandantes militares, que em 1981 haveriam de tentar um golpe militar à ainda frágil democracia instaurada e a propagação do comunismo, sob o comando de Tejero de Molina.
Ora na base do incidente no número 55 da rua Atocha estiveram precisamente as divergências com o sistema político democrático, a progressão do comunismo no país e a perda de algumas regalias sociais de outrora pelos franquistas. O desmantelamento da “máfia franquista do transporte” foi apenas a gota de água para o despoletar da resistência da extrema-direita.
Vítimas mortais do atentado tardofranquista no número 55 da rua Atocha, junto ao metro de Madrid
Pouco faltava para as 23h00 da noite e as ruas estavam parcialmente desertas. De arma na mão, os assassinos nem tiveram o cuidado de fugir, pensando ter iniciado uma Segunda Cruzada Santa, conta o jornal ‘El Mundo’. Consequentemente foram detidos dela polícia, sem qualquer dificuldade.
“Desapareceu da face da terra”
No entanto, nunca mais voltaria à prisão de Cidade Real. Sabe-se que teve acesso a documentos falsos e terá presumivelmente fugido para a América do Sul, onde a extrema-direita continuou na expansão dos seus ideais.O seu paradeiro nunca mais foi encontrado.
“Nunca descobrimos onde ele estava”, conta ao ‘El País’ o tenente-general Andres Casinello.
“Desapareceu da face da terra”, afirma ao jornal um dos irmãos de Fernando Lerdo de Tejada, que garante nunca mais ter mantido contacto com o foragido.
Os seus cúmplices foram julgados e condenados cada um a 193 anos de prisão. José Fernández Cerrá serviu 15 anos de prisão e saiu com a condicional em 1992. Carlos Garcia Juliá cumpriu 14 anos e foi depois para o Paraguai, onde voltou a ser detido por tráfico de drogas.
Para a história fica a épica fuga de um dos homens mais procurados em Espanha durante o século XX que ousou contestar a transição democrática do país. Se ainda for vivo, Fernando Lerdo de Tejada terá agora 63 anos e uma pena prescrita.
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