No mês da Consciência Negra, não queremos celebrar a oportunidade de falar sobre nós, e sim reivindicar nosso protagonismo nos 365 dias do ano.
Onde eles estão?
Esse questionamento me perseguiu de 2010 a 2016, período em que cursei Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Cria de Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, eu estava habituada a ver e conviver com pessoas pretas em todos os espaços que frequentava. Ao sair da ‘bolha’ do subúrbio carioca para estudar e morar na elitizada Niterói, me tornei exceção nos primeiros passos que dava na carreira: dos 25 alunos da turma, eu era a única negra.
Fora da sala de aula, a situação não era diferente. Nos corredores, nas chopadas, nos eventos da área, eu me sentia um corpo estranho e me perguntava “onde eles estão?”. Passei a contar quantos estudantes negros eu encontraria por dia nos campi. Raramente completava uma das mãos.
A comunidade acadêmica ignorava ou rechaçava a desigualdade que, para mim, era latente. Até mesmo os coletivos de esquerda tratavam a pauta como secundária e defendiam a assistência estudantil como prioridade, sob o pretexto de que a política beneficiaria todo mundo. Mas eu estava longe de ser todo mundo. Eu era a cota, a exceção. E, quando você é a exceção, não deseja que ninguém se sinta da mesma forma.
Pior do que ser a cota é ser invisível. Esta era a sensação do grupo de onze jovens que selecionamos para participar da Narra, primeira agência-escola de jornalismo exclusiva para moradores de favelas e periferias do Rio. Nesses territórios, as oportunidades de qualificação profissional são escassas, geralmente funcionam em currais eleitorais e raramente ensinam mais que ofícios que pagam pouco. Profissões dignas, mas é preciso questionar a lógica racista que nos restringe a essas opções e, assim, preserva a discrepância de renda entre brancos e pretos.
Na comunicação, as desigualdades não têm números oficiais, mas uma breve análise dos rostos, caras e reportagens que compõem o jornalismo brasileiro escancara que a figura do negro não está sob os holofotes, e sim em manchetes pejorativas que o apresentam como traficante, bandido ou suspeito. Quando não somos invisíveis, nos simplificam com estereótipos.
E é por isso que iniciativas como a Narra, que priorizam segmentos colocados à margem da sociedade, são importantes. Ao promover uma formação técnica em comunicação voltada para a juventude negra e LGBTQ+, afirmamos sua potência, damos ferramentas para que se apropriem de seu repertório cultural e produzam conteúdo plural e responsável, que dê visibilidade a suas vozes e vivências.
Para alcançar esse perfil, divulgamos o edital com o apoio de instituições envolvidas com esse público. Assim, chegamos a 352 inscritos em dez dias – em sua maioria negros e mulheres, com adesão de pessoas trans, indígenas e não binárias. A diversidade de experiências favoreceu a pluralidade de ideias, o que culminou em pautas que interessavam ao grupo. Em Máquina de Moer Preto, publicada pelo Intercept, a turma apresentou as contradições das políticas para os adolescentes em conflito com a lei, a partir da experiência de três ex-internos. Eles também mostraram como familiares e amigos buscam resgatar a memória de jovens assassinados pela violência de Estado e que ainda são alvo de fake news nas redes sociais.
Ao passo que a proximidade com as temáticas colabora para narrativas mais ricas, traz também reflexos à subjetividade dos jovens, cujas experiências de vida também foram marcadas pelo sistema socioeducativo ou pela perda precoce de membros da família em tiroteios. A violência sobre a qual falam lhes trouxe cicatrizes e ainda ronda os espaços de convívio. Seu dia a dia inclui ter a casa arrombada durante revistas policiais na madrugada, faltar a compromissos devido a confrontos armados que lhes cassam o direito de ir e vir, encarar crises de depressão causadas por racismo e transfobia que também fecham as portas dos postos de trabalho. Estar à margem dá trabalho; resistir cansa.
No mês da Consciência Negra, não queremos celebrar a oportunidade de falar sobre nós, e sim reivindicar nosso protagonismo nos 365 dias do ano. Defendemos que nossa visibilidade não se limite a falar sobre as demandas da negritude, mas que a negritude seja compreendida como elemento fundamental para abordar qualquer tema.
Estamos aqui: vivos, potentes e somos muitos.
Jornalista do site The Intercept brasil
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